As Praças [In]visíveis: conheça 22 praças italianas

praças italianas

Para os amantes da arquitetura e cultura italianas, o projeto “As Praças [In]visíveis” visa mostrar 22 praças italianas através do olhar de diferentes escritores e fotógrafos.

Durante a preparação deste projeto foi mantido um aspecto muito interessante entre as “duplas” (escritores e fotógrafos), alguns se conheciam há algum tempo, outros não, mas sempre houve uma forte ligação com o território por razões pessoais, opções de vida ou história familiar.

Muitos autores passaram o lockdown (devido a pandemia da covid-19) a poucos metros da praça escolhida, enquanto outros moraram ali por longos anos. O desafio foi complexo, foi preciso agir de imediato, encontrar ideias, pontos de vista, misturar a equipe com a história e valorizar a autoria de todos.

Confira abaixo relatos detalhados de escritores e fotógrafos para 22 praças italianas:

Piazza del Popolo, Roma

Relato por: Edoardo Albinati

Em: 04/05/2020

Todas as portas nos muros de Roma são uma entrada para a cidade, mas a Porta del Popolo representa uma passagem particular, talvez porque quem a atravessa vem do norte, e o norte carrega consigo um som, uma força, todo um imaginário aventureiro. Talvez o Norte seja mais História do que Geografia, e um mundo simbólico intrincado, além de um ponto cardeal.

Por alguns anos, atravessei essa porta quase todos os dias, assim, levado por uma força sem razão. Eu entrava na grande praça, girava ao redor dos leões e do obelisco algumas vezes, e saía por um dos arcos laterais, achando-me de novo no tráfego do Piazzale Flaminio, que atravessava correndo sem esperar o verde: do universo simétrico de Valadier à informal saída onde confluem a pista barulhenta do Muro Torto, uma nesga da Villa Borghese e a nobre Flaminia.

Minha cabeça girava como numa versão de bolso da famosa síndrome de Stendhal.

Para quem vive em Roma, assim como para os estrangeiros, o que a Piazza del Popolo oferece é sempre, e de alguma forma, uma visão. Um efeito ótico comparável aos fenômenos descritos por Henry Michaux sob efeito da mescalina em Miserabile Miracolo. Talvez por sua forma elíptica que provoca vertigem. Talvez pela admiração que rapidamente se transforma em sensação de irrealidade.

Quando ainda se podia passar nela de automóvel, levávamos à noite os amigos vindos de fora, passando devagar diante da estátua de Netuno, até o momento em que se podia gritar: “Olhem! O Passarinho de Fogo!” porque, por um instante, exatamente no meio das coxas do deus do mar brilhara uma violenta faixa de luz. O Passarinho de Fogo… Era um dos lampiões dependurados atrás das estátuas, sobre a via Ferdinando di Savoia. Também este um “miserável milagre”, isto é, uma magia, um truque, mas que funcionava sempre.

Também na fotografia de Olivo Barbieri, a praça não esconde, pelo contrário, exibe, sua precisão ilusionista. A elipse vazia, as ameias, o obelisco com sua sombra apontando para o norte, o tridente onírico, os preguiçosos leões de pedra que “em vez de rugir / espargem refrescantes / leques de água” (Valentino Zeichen): a cena está montada, é preciso preenchê-la rapidamente antes que a desmanchem.

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Fotografia de Olivo Barbieri, 3 de fevereiro de 2004.

Piazza San Marco, Venezia

Relato por: Francesco M. Cataluccio

Em: 27/04/2020

Sempre me perguntei qual era o melhor lado para entrar na Piazza San Marco e admirar sua Basílica que, como grande parte de Veneza, tem uma natureza arlequim. Na verdade, foi construída com as pilhagens dos palácios do Oriente. Cada navio que retornava carregava (na verdade: tinha que carregar obrigatoriamente) estátuas, colunas, pisos que serviam ​​para embelezar a cidade. A Basílica de San Marco é o exemplo mais marcante de uma colcha de retalhos de furtos, uma colagem de estilos e materiais, extraídos de seu contexto e funções originais, que a tornam única e inimitável. Este conjunto, enriquecido por mosaicos dourados, desfruta de um vasto espaço e de uma perspectiva mágica à sua frente.

Em geral, entra-se na Praça (o único lugar amplo de Veneza que merece o título de “praça”: todos os outros são “campos”) pelo lado oposto à Basílica, para admirá-la ao fundo. Todas as pinturas, que nos séculos a representaram, exploram a possibilidade de retratar a Basílica de longe, fazendo o olhar percorrer, como sobre um tapete, a praça, com as colunatas das Procuratie nos dois longos flancos que a emolduram.

Na Processione in Piazza San Marco (1496), de Gentile Bellini, John Ruskin notava que na Praça habitantes e arquitetura juntos compõem “uma única harmonia de vida e de trabalho”, enquanto os fiéis vêm em nossa direção em procissão como “um verdadeiro leito de flores em movimento”.

Desde a construção da Basílica (em 828), a praça foi alargada por meio do aterramento do Canal Batario, que a dividia ao meio: o horto arborizado das irmãs de San Zaccaria tornou-se, naquela ocasião, parte integrante do espaço destinado às manifestações públicas da nascente República de Veneza. Inicialmente, San Marco (onde estão guardadas as relíquias do santo patrono da cidade) era uma capela do Palazzo dei Dogi (fundado em 812): religião e poder estavam lado a lado como em Constantinopla, assim como o espaço fronteiro era destinado às corridas de cavalos e, de fato, quase como uma lembrança disso, no terraço da fachada da igreja despontam, desde 1254, as estátuas de quatro cavalos de bronze, retirados justamente do hipódromo da cidade do Bósforo. Em 1782, na praça, foi até mesmo organizada uma caça de touros para homenagear os príncipes herdeiros da Rússia em visita à cidade.

A Piazza San Marco, não só durante o Carnaval, está sempre apinhada de gente e de pombos. É quase impossível, a não ser ao amanhecer, admirá-la em sua complexa beleza. No entanto, um “hipódromo”, às vezes, também pode se tornar uma “piscina”. A Piazza San Marco frequentemente está submersa pela água alta. Quando eu era rapaz insensato, em uma noite fria e nevoenta, percorri com um barquinho a motor um trecho do Canal Grande e, à altura do Palazzo Ducale, virei à esquerda, flutuando sobre a água que já cobria a Riva degli Schiavoni. Passei entre as duas colunas encimadas por San Teodoro vitorioso sobre o dragão (aqui parecendo mais um crocodilo) e pelo leão alado com o livro.

Acima do pavimento, naveguei até dentro da Piazza San Marco. As pequenas ondas refletiam os edifícios, encrespando-os e agigantando-os. Não tinha ninguém e o único barulho era o marulho do barco que fendia a água. Lá no meio, à luz incerta dos lampiões, eu olhava San Marco e me parecia estar dentro do tanque de Bagno Vignoni, que influenciou Andrej Tarkovskij em seu filme sobre a nostalgia.

Uma imensa praça deserta, exatamente como a apresentou (em 1500), com suas pranchas entalhadas em madeira de pereira, Jacopo de’ Barbari, em sua surpreendente Veduta aérea: um grande retângulo vazio que, como um espelho, reflete ao céu a magnífica igreja com as protuberâncias misteriosas de suas cúpulas.

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Fotografia de: Luca Campigotto, 14 de abril de 2020.

Piazza Navona, Roma

Relato por: Valerio Magrelli

Em: 15/04/2020

Mas será que ninguém percebeu? É possível que ninguém nunca o tenha escrito? Pode parecer inacreditável, mas nunca li sobre isso em lugar nenhum. Portanto, quero dizer com clareza: a Torre Eiffel é a cópia exata da Fontana dei Fiumi de Gian Lorenzo Bernini.

Sim, o modelo do mais célebre monumento de Paris surge no centro da Piazza Navona, o que equivale a dizer que o símbolo da França vem diretamente da Urbe. Basta imaginar quatro pilares no lugar das estátuas que representam os rios e uma estrutura de aço ao invés da cópia romana de um obelisco egípcio: voilà, o jogo está feito.

Afinal, o escultor, pintor e arquiteto italiano do século XVII não passou alguns meses além dos Alpes, chamado pelo próprio Rei Sol? Uma imagem como esta (Bernini desenhando o Louvre) bastaria para explicar a importância que esta praça tem para mim, nascido em Roma, mas primeiro como aluno, depois como professor de literatura francesa há mais de quarenta anos.

Entretanto, esta praça possui algo de ainda mais tocante, que não tem nada a ver com Paris. Refiro-me à igreja de Sant’Agnese in Agone, iniciada apenas um ano depois da inauguração da fonte, e colocada justamente à sua frente por um arquiteto que, assumindo trabalhos já iniciados, transformou-a numa joia: Francesco Borromini.

Que contato extraordinário, que assombrosa proximidade! Não faltarão certamente alguns casos análogos no curso da história, porém creio que seja raro, em que duas personalidades tão grandes e principalmente tão opostas tenham vivido tão próximas e com tanta recíproca antipatia. Talvez por isso, ver lado a lado esta dupla de obras primas provoque uma impressão contraditória, inquietante, como dois polos magnéticos muito perto um do outro, colocados em uma proximidade insustentável.

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Fotografia de Francesca Pompei, 27 de abril de 2020.

Piazza Santa Croce, Firenze

Relato por: Giorgio van Straten

Em: 29/04/2020

Uma praça vazia por alguns minutos é linda, depois se torna insuportável, porque uma praça vazia é um fato antinatural. A praça é um espaço público, um lugar de encontro, a chegada das ruas que a circundam, ainda mais quando, como no caso da Praça Santa Croce, está no centro de uma área densamente habitada e, portanto, não são só os turistas que a preenchem, mas também os habitantes. Nunca a vi tão vazia, mesmo porque, diferentemente da Piazza della Signoria, que é o lugar das instituições, este é o lugar dos encontros, das feirinhas, dos concertos, da rapaziada que se encontra à noite para beber e conversar, de quem a atravessa com as sacolas do mercado.

Uma praça não pode ser um símbolo, seu sentido só pode ser dado pela gente que a preenche. Não pode ser representação, nem mesmo quando ao fundo há uma igreja e no átrio da igreja a estátua de Dante, neste caso só o simulacro de um corpo que a cidade expulsou e que por isso jaz no lugar de exílio, não no sepulcro que lhe foi dedicado.

Não, uma praça não é um simulacro, quando está vazia sua beleza fica ofendida: foi tão justo libertar muitas praças dos automóveis, quanto é injusto libertá-las dos homens.

No fundo, uma praça é como um palco: é preciso preenchê-la. E uso esta similitude não casualmente, em dias em que até os teatros precisaram ser esvaziados. Imagino todas as suas cortinas fechadas, porque as cortinas servem para isso: para não deixar ver os palcos em sua nudez, do mesmo modo que não se deve ver um ator no camarim, é só no rito coletivo da representação que um palco ganha sentido. E o objetivo das cortinas é se abrirem. Pode parecer justo ou fascinante que a natureza se reaproprie dos espaços humanos, mas para mim é o sinal de uma derrota quando, como no caso de Chernobyl, é a silenciosa invasão de um inimigo invisível a tornar possível essa reapropriação.

Para nós, o abandono, felizmente, não será medido em séculos, diz respeito apenas a  dias, no máximo semanas: depois, aquelas pequenas figuras que, se vocês fizerem um esforço poderão distinguir aqui e ali no lados da praça, irão se multiplicar, voltando finalmente a preenchê-la.

piazza santa croce
Fotografia de Claudia Gori, 22 de abril de 2020.

Piazza di S. Maria in Trastevere, Roma

Relato por: Jhumpa Lahiri

Em: 29/04/2020

Nesta praça estou quase sempre em movimento, mas também posso me imaginar parada, precisamente na posição do fotógrafo.

Atrás de mim há uma banca de jornais com muitos jornais estrangeiros para os turistas que passam. Pouco mais atrás, a pequena livraria que frequento regularmente, em seguida o acesso para chegar a outra livraria, também pequena, onde meus filhos vão comprar os livros em inglês, na ruazinha ligeiramente curva que leva à Ponte Sisto. Sempre atrás de mim, o grande bar que dá para a praça, onde me sentei uma vez sozinha com Patrizia Cavalli, quando ainda nos conhecíamos pouco.

Na praça, à direita, há uma farmácia – nestes dias deve ser o único lugar aberto – e uma sorveteria onde nunca entrei. Prefiro as casquinhas pequenas de um euro do Bar San Calisto, dobrando a esquina, a dois passos do meu cabeleireiro. De fato, na minha cabeça, a Piazza Santa Maria in Trastevere engloba a Piazza di San Calisto e até a Piazza di Sant’Egidio, tornando-a uma confluência que reúne os corpos humanos e os reparte em todas as direções.

Num prédio acima da farmácia, emoldurada por uma das janelas, estará uma senhora idosa – quase na mesma altura dos quatro pontífices da balaustrada – que normalmente vigia a multidão embaixo de sua casa, como se também fosse uma estátua. Vejo-a quando entro na praça vindo de casa, de San Cosimato. O que ela pensa dos concertos, das contorcionistas, dos funerais, dos estudantes que se embriagam, dos rapazes de Bangladesh que lançam para as estrelas, de noite, aqueles brinquedos cintilantes de plástico que terminam se esborrachando no chão? Aqueles brinquedos que meus filhos, uma vez, desejaram tanto. Se passeávamos depois do jantar começava a ansiedade: por favor, por favor? Sempre dissemos que não.

O que aquela senhora pensa, agora que não há nada para ver além dos militares, dos pontífices, das mulheres desbotadas que flanqueiam Maria no mosaico da fachada da basílica, as cabeças de lobo de cujas bocas a água não cai mais? O que ela acha da erva daninha – não consigo dizer pela foto se é grama ou uma espécie de musgo – que cresce e se espalha entre os paralelepípedos? Será que a presença inusitada daquela erva daninha lhe faz pensar na ausência de tudo?

Na época em que ainda não havia a praça, a fonte, a Basílica, os edifícios, o parapeito no qual ela se apoia para sentir por um instante o sol radiante no rosto? Talvez seu olhar caia naquele canto da praça onde o Palazzo di San Calisto se junta ao pórtico da Basílica: o único ponto fechado que torna esse local público um espaço impróprio e, ao menos parcialmente, sem passagem.

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Fotografia de Flavio Scollo, 14 de abril de 2020.

Piazza Carignano, Torino

Relato por: Benedetta Cibrario

Em: 26/04/2020

Cada vez que volto lá, paro e olho. Não mudou a ponto de não ser reconhecida. Hoje está mais limpa, talvez mais rica, mas ainda é ela, a praça que você atravessa forçosamente se tem que ir de norte a sul, ou de leste a oeste. Não sei se corresponde ao centro da cidade, mas não importa – a gente acaba passando por ela, por hábito e pela beleza. Pois, é preciso dizer, é bela essa ruptura no esquema de fachadas ordenadas, de ruas largas e retas, de praças amplas, de onde se vê Guarini e Juvara, se avista o Collegio dei Nobili e o Oratório di San Filippo Neri , a educação dos ricos ao lado da dos pobres.

Há mais de um século há uma livraria na esquina. Vínhamos aqui no sábado à tarde para folhear livros, sempre indecisos porque era preciso escolher e a escolha era um sofrimento. Vínhamos ao teatro, o mesmo em que Alfieri viu estrear suas tragédias e Carlotta Marchionni e Adelaide Ristori representaram. E vínhamos ao Pepino, a sorveteria fundada por um napolitano quando ainda a Fiat não havia chamado os meridionais para trabalhar na fábrica: uma forma de integração bem-sucedida, um sulista que chega a Turim trazendo a família e inventa o sorvete para viagem, com gelo seco, e o sorvete de passeio montado num palito.

Do restaurante do Cambio, um pouco mais adiante, sabíamos só que Cavour ia comer miúdos de frango e que o “câmbio” era a troca dos cavalos dos viajantes em trânsito de e para a França. Da estátua de Gioberti, entretanto, não sabíamos nada e nem nos interessava. E depois há o palácio dos Carignano, que Davide Bertolotti, em 1840, descreve como uma aberração arquitetônica em que Guarini exagera seu singular ódio pela linha reta a ponto de fazer as paredes curvas e levar à vertigem.

A minha adolescência, e talvez outras tantas, passou-se copiando exatamente o mesmo movimento das ondas côncavas e convexas daquele mar de tijolos, seguindo os cheios e os vazios na tentativa de fazer entrar toda a grandeza do que imaginávamos estar no espaço reduzido das nossas capacidades.

Nos subterrâneos do palácio – que aqui se chamam infernotti – íamos ao Movie Club para ver filmes japoneses, filmes b, os clássicos e as raridades, e terminado o filme voltávamos à praça perturbados, tentando nos reconciliar com a realidade. A aversão de Guarini pelas linhas retas, pelas formas regulares, sem imaginação, guardávamos no bolso como um talismã; e também o pensamento que cedo ou tarde algo de novo, experimental e inesperado, como o palácio Carignano, espantaria as arquiteturas sóbrias e uniformes de nossas vidas.

piazza carignano
Fotografia de Eva Frapiccini, 30 de abril de 2020.

Piazza Baldaccio, Anghiari

Relato por: Margherita Loy

Em: 28/04/2020

Praça ou esplanada? Costeando a violenta descida em direção à planície, a praça-esplanada de Anghiari parece um trampolim e Garibaldi parece um juiz pronto para dar a partida. A mão do líder deveria indicar Roma: Roma ou morte, então a morte, porque a mão indica Milão. Por quê? As respostas são diferentes: por equilíbrio, por engano. Brincadeira do destino? Um anti-garibaldino, um guelfo post litteram, um clerical disfarçado de artista? Ninguém percebeu? Quem sabe.

Mas dedicar essa original praça-esplanada a Baldaccio d’Anghiari é um ato corajoso, que diz muito sobre a Itália litigiosa e fragmentada do século XV. Nesta zona fazia furor o feroz Baldaccio, mercenário, menos afortunado e astuto do que seu amigo-inimigo Federico da Montefeltro. Há, também, em torno de Baldaccio a pequena infâmia das mãos: diz-se que ele mandava cortá-las dos inimigos capturados para que passasse a vontade deles de lutar. Personagem sombrio, cumulado de honras e manchado pela crueldade, via a si e seu exército de infantaria mercenária sacudirem a Itália nos anos 1400 (seu exército foi muito menos valorizado do que outras cavalarias, mas muito temido; foi até, e com honra, citado por Maquiavel).

Acabou sendo traído pelos capangas de Cosimo o Velho, assustados com o poder e a coragem de Baldaccio e de seus soldados: atraíram-no com uma cilada a Florença, mataram-no e jogaram o corpo apunhalado na Piazza della Signoria. E se não fosse por essa praça, talvez Baldaccio fosse desconhecido.

Fui lá no verão passado, para um aperitivo ao anoitecer; perguntei-me por que a principal praça de Anghiari não era dedicada a Garibaldi, como indicava a estátua; talvez, pensei, por causa daquela pequena desonra da mão para o norte. Surpreendeu-me a praça-esplanada; céu e luz prateada do escurecer na parte plana e não consigo esquecer aquela rua que mergulha íngreme, como uma cascata, na planície da célebre batalha. Agora imagino e vejo o silêncio que vem de longe, e uma quietude que leva aos tempos de Baldaccio; não a quietude que segue a fúria do exército mercenário, no chão cadáveres e corvos. A quietude de agora deve ser estranha, suspensa entre o azul e a esperança, entre um sonhado aperitivo no bar da esquina e o inverno desta primavera congelada, o frio de solidão caseira enquanto fora triunfa a suavidade; solidão que cedo ou tarde irá se desfazer numa nova incursão, desta vez pacífica, na esplanada-praça, entre as mesinhas do bar invisível.

Piazza Baldaccio
Fotografia de Paolo Ventura, 30 de abril de 2020.

Piazza del Duomo, Catania

Relato por: Salvatore Silvano Nigro

Em: 26/04/2020

Uma página me vem em mente, uma lembrança de leitura. John Dryden Jr., filho do poeta John Dryden, chegou a Catania em 14 de novembro de 1700. Já estava anoitecendo, e era domingo.

O jovem viajante pensou ir logo até a Catedral. Encontrou lá dentro um grande desastre. O terremoto de 1693 havia semeado escombros. Havia destruído “três quartos da igreja”: não havia mais o campanário, desabara a nave central. A praça fronteiriça era um deserto adornado pelas ruínas. Mas naquela praça os sinos haviam sido montados, “ao ar livre, em grandes traves de madeira”. Seu toque, apesar de não perfeitamente “afinado”, dissipava o gelo de morte que pairava sobre aquela poeirenta solidão.

Uma solidão diferente, mais furtiva enquanto privada de tatilidade, é o que nos mostra agora esta fotografia da Piazza del Duomo de Catania. Pressupõe outro desastre, uma furiosa pandemia, o lockdown e o distanciamento social que, entre as angulosas fachadas barrocas, entre o campanário de Girolamo Palazzotto, a cúpula, a fachada implementada por Vaccarini e a cortina parada desenhada pelo Palazzo dei Chierici, deixa transbordar a claridade de um deserto de luz que tudo assombra: ofuscando e iluminando o negro da superfície das ruas em pedra vulcânica que joga com o preto e branco da arquitetura; e visionariamente pontuando o vazio com os pontos de exclamação dos lampiões: enquanto a silhueta abreviada de um pedestre é como que sugada por uma mancha de sombra.

No centro da praça, a fonte do Elefante, que sustenta um obelisco em estilo berniniano, chama a atenção. Pequenos querubins derramam a água em espiral que flui do rio subterrâneo Amenano para as bacias. A fonte é um carrilhão. E lembra, brincalhona, a grande fonte do Amenano que, invisível pelo recorte da foto na esquina do Palazzo dei Chierici, deixa cair um perene e voraz lençol de água da cornucópia da estátua alegórica do rio. Um murmúrio, mais afinado do que os sinos lembrados por John Dryden, é a trilha sonora para a solidão desolada da praça. Esse murmúrio, geralmente inaudível devido ao barulho caótico da vida citadina, devolve “voz” ao teatro barroco da praça. Voltar a fazer a arte cantar, a fazer as pedras cantarem.

piazza del duomo
Fotografia de Alice Grassi, 23 de abril de 2020.

Piazza della Signoria, Florença

Relato por: Carlo Carabba

Em: 20/04/2020

Quase todos os professores que tive, desde a adorada mestra da escola elementar até a professora de história da arte no segundo grau, gostavam de repetir aos alunos que o fascismo fizera um massacre arquitetônico, derrubando as casas medievais do Borgo Pio para deixar espaço para a larga rua que leva a San Pietro e que foi chamada Viale della Conciliazione.

Bernini, explicavam, havia projetado a colunata de modo a deixar sem fôlego o viandante que se encontrava de repente em um espaço majestosamente aberto diante da Basilica, depois de ter atravessado uma selva de becos estreitos, guiado somente pelo jogo de perspectiva da cúpula de Michelangelo (visível, diziam, enquanto se estava perdido nas vielas, sem ter chegado à praça).

Mas eu não prestava muita atenção às histórias deles, no fundo não me sentia romano e pouco me importava com as histórias locais. Eu era de Florença, a cidade de meu pai e de meu irmão, onde eles viviam e também vivia a parte mais numerosa de minha família.

Em Florença, porém, meu espírito sentia-se pesado, como se minha presença ali desmascarasse a impostura em que me movia: a minha cidade podia ser apenas aquela em que eu nascera e crescera, Roma, não aquela que eu aspirava como pátria ideal e herdada. Eu queria ficar sempre em casa, como se entre as paredes domésticas a realidade tivesse menos poder sobre mim e eu pudesse permanecer na ilusão de ter reencontrado a minha terra perdida.

Mas cedo ou tarde era preciso sair e a geografia da cidade contribuía para o sentimento de angústia e opressão que eu sentia, as paredes das casas que se defrontavam próximas e me pareciam se comprimir até se tocarem, os becos tortos que nunca levavam para onde eu pensava que estivessem indo e que nenhum ditador havia irrefletidamente pensado em derrubar para dar espaço a uma grande alameda.

Mas Florença também era aberturas repentinas que vinham me confortar, uma ajuda que a cidade me oferecia. Três, especialmente. O Arno, os reflexos dos edifícios, San Miniato distante e serena no alto. Piazza della Repubblica, “de secular abandono restituída à nova vida” (portanto, haviam derrubado alguns edifícios, afinal), lema que resgatei de um bilhetinho que meu pai e sua mulher colaram numa tabacaria, quando minha avó morreu e muitas das suas coisas, de bom e de péssimo gosto, terminaram na casa deles, que nesse meio tempo tinham se tornado avós.

E, principalmente, Piazza della Signoria, que aparecia de repente e nunca onde eu estava procurando, e não era apenas uma praça, mas pelo menos três, e tinha com ela séculos de estratificações desde os primeiros assentamentos neolíticos e depois romanos, ao nascimento da Comuna, as lutas entre Guelfi e Ghibellini que tanto apaixonam os estudantes, sabe-se lá por que, quando se fala de Dante (e de novo todos os professores advertem que, mesmo se chamado de “ghibellin fuggiasco” (ghibelino fugitivo), Dante era na verdade guelfo), o Palazzo Vecchio, símbolo do poder político e econômico de Florença, e depois a fuga da praça em direção ao rio, com a construção dos Uffizi no século XVI, o Palazzo delle Assicurazioni, construído quando Florença era capital, em estilo neorrenascentista, como que testemunhando a eterna presença do Renascimento na vida florentina, e o museu de Gucci, como que testemunhando a presença das grandes marcas da moda na vida florentina dos últimos cinquenta anos.

E todas as estratificações históricas desta grande praça em forma de ele, uma clareira inesperada no coração de Florença, encontravam correspondência nas estratificações de meu espírito, e me parece que cada lado esteja ligado a um período da minha relação com Florença: o lado da Piazza della Repubblica, justamente, lembrava-me a casa de minha avó onde eu dormia quando criança, o lado detrás de Biancone, a Fontana di Nettuno, seguindo a direção indicada pela Torre del Bargello conduz ao bairro da minha noiva do início do milênio, com a qual fiquei quase três anos, mas de quem perdi qualquer contato e quase qualquer lembrança. E por fim o lado que, suavemente, do Uffizi leva ao Arno, que sempre posso seguir para voltar para a casa em que vivem meu pai e sua mulher, a minha casa de família.

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Fotografia de Daniele Molajoli, 11 de abril de 2020.

Piazza del Popolo, Todi

Relatado por: Giovanni Grasso

Em: 14/04/2020

Quando, no início dos anos 1990, uma equipe de estudiosos americanos proclamou Todi “cidade ideal”, com base em não sei quais parâmetros, em casa reagimos com um misto de ciúme, ironia e arrogância. Porque nós, família siciliana estabelecida em Roma nos anos vinte do século passado depois de algumas peripécias, já sabíamos há algum tempo. Isto é, desde quando vovô Giovanni, advogado de digna atividade profissional, mas com o sagrado fogo pela terra, decidira, poucos anos depois de sua chegada a Roma, comprar oitenta hectares em meio a campos e bosques, em frente a Todi, para ali fazer um empreendimento agrícola.

Empreendimento agrícola que foi vivendo por várias décadas, mesmo depois de sua morte em 1947, com balanços raramente positivos.

Nós, estranha estirpe de burgueses da capital, que andava por Todi rigorosamente em trajes de campanha, com calças de fustão e botas de borracha sujas de lama, sabíamos há algum tempo que a Piazza del Popolo, ao mesmo tempo sóbria e cenográfica, era sem qualquer dúvida “uma das mais belas da Itália”, como recitavam com alguma ênfase os antigos guias do Touring Club com lombada desbotada.

Uma vasta, inesperada esplanada retangular de pedra, no topo de um retículo de ruazinhas escuras muito inclinadas que, para subir tiravam o fôlego, circundada pelos edifícios representativos dos poderes municipais nos tempos de ouro das Comunas: o Palazzo dei Priori, o Palazzo del Popolo, o Palazzo del Capitano, o Duomo. Construídos em competição harmoniosa e discreta entre si, sem luxo.

Nós já conhecíamos o segredo de Todi e sua praça, uma explosão repentina de luz, beleza e solenidade íntima. Havia muito tempo. Pelo menos, no que me diz respeito, desde quando a autoestrada de Orte nem existia e as intermináveis curvas da velha Via Flaminia me incutiam resignado respeito, com sua carga de tédio e de enjoo. Então, o que vinham nos contar esses americanos?

piazza del popolo
Fotografia por George Tatge, 18 de abril de 2020.

Piazza del Duomo, L’Aquila

Relatado por: Caterina Serra

Em: 07/05/2020

De novo ali, parada no centro da praça. Já a tinha visto, lembrava-se dela. Estava em um ponto daquele retângulo vazio que lhe parecia uma clareira em algumas noites escuras, aquelas em que saía e se sentia melhor. Estava ali com a cauda baixa, parecia esperar ver alguém, ouvir passos. Da primeira só vira cães, parecia que a praça era habitada por eles. Lembrava-se até do silêncio. Como um corpo pesado, escuro, embriagado que caía em cima dela. A noite ainda é assim, pensara, as pessoas estão em casa, as risadas de alguns bares já fechados, lembrava-se. Já tinha estado lá, havia experimentado a mesma sensação de medo e alívio, ninguém que a seguisse. Não ser vista dava-lhe uma sensação de liberdade.

Não encontrar ninguém a fizera pensar que a desolação era onde as pessoas não marcavam mais encontros. Tinha vontade de correr forte e respirar forte como se a solidão fosse um belo modo de ser, quando sozinha não queria dizer estar perdida, desesperada.

Ali, no centro daquela praça, parecia a mesma noite, come se lembrava dela, as janelas como buracos negros, o mesmo escuro. A cidade vazia parecia a mesma da primeira vez, quando a vira cansada, exausta, mesmo que agora tenha mudado de feição, como se a tivessem preparado para novos habitantes e depois tivessem decidido deixar as pessoas de fora, tivessem limpado as ruas das pedras quebradas daquelas casas em pedaços, tivessem-nas recolocado em pé e depois as tivessem fechado para sempre.

Lembrava-se da força daquela decadência. Na primeira vez sentira um ar de morte, e agora, o que era aquela estranha coisa que lhe vinha em cima? Aquele silêncio começava a incomodá-la. Era fria aquela praça, era belíssima e fria. Sem corpos uma praça não tem sentido. Imaginava-a de dia, com aquele sol que cega, brilhante como certas rochas que lhe eram mais familiares. Parecia-lhe sentir o cheiro do sabugueiro. Aquela praça vazia parecia um contrassenso, porque ter uma praça se não há ninguém para ocupá-la, para fazer um círculo de corpos, para falar, talvez berrar, deslizar, para ter vontade de dançar em volta dela, para ter vontade de fazê-la sua, de sentir que aquele espaço público era de todos, era gratuito, era livre, era um direito estar lá dentro. A praça boca do mundo, ouvira alguém chamá-la assim.

Para que renová-la se ninguém parecia ir lá, talvez não se pudesse mais? Talvez ninguém quisesse? Talvez estar ali naquele espaço refeito não lembrava mais nada, nem um escrito nos muros, uma marca, uma pedra mais escura a dar conta dos anos, de certos encontros, de um amor, de uma noite na rua, de uma manifestação, de uma brincadeira de criança. Talvez alguém tenha decidido proibir a praça, esvaziar as ruas, e todos tivessem medo de sair. Parecia o vazio doente de uma epidemia. Talvez tenham decidido que não se podia mais se encontrar ali, talvez a cidade tenha esquecido de quando os corpos se tocavam, se tocavam continuamente.

Era a segunda vez que ele vinha ver aquela praça. Parecia parada, um espaço ausente. Com aquela grua que era um totem, um monumento aos mortos e um aviso aos vivos, que parecia ter sido deixado ali para dizer que não acabou, não, a vulnerabilidade de toda construção humana nunca foi superada. Como se fosse uma ameaça ao invés da prova de todos os seres vivos. Ele sentiu a mesma desorientação de então, mas não devia ser pelo mesmo motivo, por causa da terra que daquela vez havia tremido.

Ali, sozinha, sem ninguém que a assustasse, a Raposa começava a ter medo. Tinha vontade de ouvir alguém falar, de ver alguém passar, de vozes, de música, de um xingamento, uma risada, um grito. Devia ter sobrado alguém, devia até haver alguém que tivesse vontade de retomar aquele espaço, de ficar junto olhando o céu, olhando-se no rosto, dizendo-se alguma coisa, tocando-se, pensando, mesmo só pensando em como fazer para viver de novo juntos.

Tê-la-iam visto, teriam se olhado e talvez ela teria fugido. Ou talvez seus corpos teriam se cheirado, tocado, teriam dito que uma praça é de qualquer um que tenha a coragem e o desejo de estar ali.

piazza del duomo itália
Fotografia de Giovanni Cocco, 7 de maio de 2020.

Piazza Sebastiano Satta, Nuoro

Relatado por: Marcello Fois

Em: 26/04/2020

Ainda assim a pedra fala e narra

De glórias de argila faz a história

E das derrotas supera a desonra

Disseram que ele poderia se expressar pela pedra. Porque responder aos poderosos, que cruzaram o oceano para trazê-lo de volta para casa, e que lhe pediram o projeto de uma praça, não era fácil. Ele, Costantino Nivola, de Oran, tinha pedido tempo porque a encomenda não era pouca coisa: dizia respeito a um lugar, dizia respeito a um significado, dizia respeito a um símbolo. O lugar era Nuoro tremenda: o reino de cima e de baixo, com a acrópole de granito e, mais abaixo, a aldeia pavimentada com pedras de rio. Plena daquela presunção que só os lugares que não precisam ser abençoados, que não precisam de aprovação, têm. Esse lugar gera gente presunçosa e tremenda. Como são tremendas as pessoas dos Canti.

E deve negociar com a seca avareza da pedra à qual deve impor o germe, aquele lugar. E entendeu que qualquer presente é pago setenta vezes sete, aquele lugar.

Por isso dizem que é repleto de cabeças aguçadas e inteligentes. Até à autoagressão que, dizem, é o verdadeiro contrapasso dos inteligentes. Todas as pessoas fascinantes e indolentes: para conciliar alguma coisa, em Nuoro de pedra suspensa, necessitam da determinação dos aldeões das cercanias. Severo e escorregadio, portanto, esse lugar. Costantì, cuidado que você se machuca!

Quanto ao sentido, disseram que teria sido um espaço para o humano e, no máximo, para animais pastarem. Para afazeres de mulher e mexericos de homens, como acontece nos lugares em que homens e mulheres podem exercitar tarefas não-rituais. Uma praça, em resumo, com as características de praça. Linha de pedra domesticada como uns são domesticados, pedaço de pedra pura e frágil, como outros são puros e frágeis. Neste mundo que é ao mesmo tempo primeiro e último. Primordial e terminante. Sutil e vaidoso. Perigoso por mais que o antigo dê espaço ao moderno. É isso: difícil esse sentimento. Terrível de fixar. Porque é um sentimento de prazer e dor sem solução de continuidade. De ódio e de amor contínuos, de oscilações ondulantes. Constante, Costantino.

Depois olhar no rosto de Bustianu, daqueles dos Satta, bravíssima gente. Que era o símbolo de justiça, de perspicácia, de criatividade e, ai de mim, de indolência. Como acontece aos poetas que reviram a terra do campo de sua linguagem usando a pena como um arado. Aquele Bustianu, dos advogados Satta, que era um nurágico moderno a ser retratado em bronze, como os pais, minúsculo e corpulento, nos granitos. Muito pouco parece afetar um verso, como dedos hábeis que modelam a matéria. Assim, Costantì.

Eis o que o era aquela praça: uma esplanada de granito esquadrejado emoldurada por pedra redonda de rio, com enxertos de rochas naturais nos quais cavidades contam de Bustianu, dos Satta de Nuoro, deitado cochilando, a cavalo na natureza, no tribunal arengando, em seu quarto a pensar, por aí fazendo confusão. Bravo Costantì!

piazza sebastiano satta
Fotografia de Luca Spano, 23 de abril de 2020.

Piazza Baracca, Lugo

Relatado por: Elisabetta Rasy

Em: II/04/2020

Como acontece em muitas famílias, meu pai e sua sogra não se davam bem. Mas não era uma questão de papéis familiares ou de caráter, o problema era que vinham de mundos completamente diferentes. Meu pai fazia parte de uma família cosmopolita e viajadora, com base em Nápoles e em Paris; minha avó materna provinha da campanha de Ravenna, mais precisamente de uma pequena cidade, Solarolo. Mas havia algo que os unia e os colocava harmonicamente de acordo: o amor pela aviação.

Para meu pai, a razão era óbvia: desde menino havia visto no voo as maravilhas do progresso futuro, e depois na academia, como jovem capitão da aeronáutica, participara com muito destaque em uma guerra que não devia ter lhe agradado, já que amava os filmes de Hollywood e Louis Armstrong. Ao contrário, o que levou a pequena provinciana de Solarolo ao amor pelos aviões, foi o mito de um seu conterrâneo; o herói de guerra e visionário do voo Francesco Baracca, nascido a poucos quilômetros do lugar onde ela nascera, isto é, em Lugo di Romagna.

O jovem piloto, de apenas trinta anos, foi abatido em 1918 depois de mais de trinta missões vitoriosas e, menos de vinte anos depois, em 1936, sua cidade lhe dedicou um monumento. Uma estátua de bronze, mas não só: genialmente, o escultor, o artista Domenico Rambelli, colocou ao lado dele uma asa de vinte e sete metros de altura, com uma base de cimento armado revestida de mármore travertino brilhante.

Essa espécie de menir moderno, que parece vir de um misterioso planeta do futuro e não do Neolítico, muda a geometria quadrada da praça que leva o nome do piloto, transformando-a em uma espécie de lugar metafísico à De Chirico e exaltando sua total originalidade estética.

A asa, de fato, como uma grande flecha apontando para o alto, com sua audaz verticalidade contrasta com a horizontalidade das baixas construções que delimitam o perímetro da praça: uma igreja e edifícios com pórticos de épocas diferentes, mas todos da mesma contida altura. Quem passa por ali – os habitantes de Lugo ou os visitantes – dificilmente se aproxima do monumento do herói caído. O olho é arrebatado para o alto pela grande asa, que às vezes desaparece na névoa e em alguns momentos torna-se quase incandescente sob o sol.

Há muitos anos, numa peregrinação aos lugares da família de minha mãe, pareceu-me que aquela praça, com a coroa horizontal das tradicionais e cordiais construções com pórticos e o impulso poderoso da grande asa, colocasse cenograficamente juntos as fantasias ingênuas da menina do campo e os sonhos futuristas do menino da cidade.

piazza baracca
Fotografia de Luca Nostri, 8 de abril de 2020.

Piazza dei Martiri, Carpi

Relatado por: Liliana Cavani

Em: 23/04/2020

Por anos eu não soube que a praça de Carpi era uma das mais belas. Para mim era a praça toda pavimentada com pedras de rio (muito incômodo para as bicicletas) que aos sábados se enchia de bancas e gente que vinha até dos arredores deixando as bicicletas “em depósito”, isto é, num vendedor de bicicletas que também tem um espaço para quem vem de fora. Havia também tocadores de acordeom ou de violino que me encantavam. Eu morava no Corso Manfredo Fanti que terminava exatamente na praça.

De um lado havia o Pórtico (merece a maiúscula), longuíssimo, elegante, de tijolos e se bem me lembro desenhado por Giuliano da Sangallo (nos bons anos do Renascimento), onde aos domingos no fim da tarde havia o “passeio”, isto é, duas filas de pessoas que passeavam em duas filas em sentido contrário provocando os encontros e as paradas para cumprimentos e olhares. Minha mãe me arrastava até lá e para mim, menina, não era um divertimento, mas ela ficava contente e me mostrava acreditando que eu fosse linda, eu me aborrecia. Do outro lado da praça fica o belíssimo Castello tre-quatrocentista dos Pio (família aparentada com os Estensi de Ferrara) e ao lado do Castello o teatro Municipal, uma joia.

Depois há o Duomo do final do século XVI voltado para a praça e, se me lembro bem, projetado por Baldassarre Peruzzi. Quando criança pensava que todas as cidades eram assim, com espaços e uma arquitetura elegante, muitas vezes de tijolos e bem decoradas. De fato, para ir à escola no ensino fundamental, eu atravessava a praça e entrava no castelo pelo grande arco e passava pelo belo pátio do século XV de grande pureza arquitetônica (na época eu não sabia) para chegar a Piazza Re Astolfo. Aqui ficava a escola elementar ao lado de uma igreja do século XIII, de uma pureza infinita e um alto campanário da mesma época. Até os dez anos, eu pensava que todas as cidades fossem assim, claro que depois precisei mudar de ideia.

Carpi tinha uma história particular, tinha sido um pequeno centro cultural entre o Humanismo e o Renascimento. Em Carpi existe uma rua dedicada a Aldo Manuzio, pai da Imprensa (aquele das letras “aldinas”), que era amigo de um príncipe Pio, como também o era Pico della Mirandola, cidade a uns quinze quilômetros. Em resumo, crescendo entendi que nem todas as cidades são tão bonitas. Percebi que a minha cidade tivera a sorte de um equilíbrio econômico que permitiu juntar necessidade e beleza. Uma migalha do que é Florença ou Roma, obviamente, mas penso que tenha transmitido a seus habitantes habituar os olhos e a sensibilidade a uma medida de gosto que não se encontra em qualquer lugar. O percurso da praça até a escola era e continua sendo um percurso de verdadeira beleza.

praças italianas piazza dei martiri
Fotografia de Olivo Barbieri, 11 de maio de 2020.

Piazza Sant’Antonio Nuovo, Trieste

Relatado por: Francesco Zanot

Em: 02/04/2020

O Pantheon de Roma é o modelo de numerosos edifícios em todo o mundo. Entre eles há a Rotonda de Andrea Palladio em Vicenza (por sua vez inspiração para centenas de outras construções), o templo Canoviano em Possagno, a igreja da Gran Madre di Dio em Turim, o Pantheon em Paris (obviamente), a rotunda do British Museum em Londres, a fazenda de Thomas Jefferson em Monticello, o Jefferson Memorial em Washington, até o Mercedes-Benz Stadium em Atlanta e a Aranya Art Center em Qinhuangdao.

Explorando a força atávica da sua forma pura, feita de um engaste único entre quadrado (a planta) e círculo (a cúpula), o Pantheon desafia o tempo e a história. Sua natureza de templo dedicado a todas as divindades passadas, presentes e futuras é confirmada por sua herança: os exemplos citados correspondem a diversas funções, diversas épocas, diversos lugares.

Por outro lado, basta abrir o Google Maps e observar a Rotonna romana do alto para sentir um arrepio de susto: parece um disco voador que aterrizou em pleno centro de uma das mais antigas cidades da terra. Deve ser por isso que na primeira vez que atravessei a Piazza Sant’Antonio Nuovo, em Trieste, ou observando a fotografia que Stefano Graziani fez de lá, senti o mesmo encanto.

Projetada no início do século XIX, por Pietro Nobile (sua obra mais famosa é o Theseustempel em Viena, uma espécie de reprodução em escala do templo de Hefesto, teletransportado de Atenas para o coração do Império Austríaco após mais de dois milênios), a igreja que fica no lado leste é inspirada no Pantheon, ao qual se sobrepõem os ecos das ideias fantasiosas de Étienne Louis Boullée. Como os projetos utópicos de seu colega francês, sem dúvida o mais visionário de todos os arquitetos neoclássicos visionários, ele rompe com tudo ao seu redor. Seu volume leitoso se eleva sem aviso entre o mar e as colinas. É uma alucinação, uma miragem. É o palco ideal para o pouso de alienígenas.

piazza sant'antonio nuovo
Fotografia de Stefano Graziani, 28 de abril de 2020.

Piazza del Popolo, Ascoli Piceno

Relatado por: Clio Pizzingrilli

Em: 28/04/2020

Eu devia ter dezessete anos, agora tenho sessenta e oito. Estava sentado na escadaria da banca de jornais de Giosafatti, encostada na igreja de San Francesco, no lado norte da praça – era o lugar onde havíamos adquirido o hábito de nos reunirmos em torno de Serge, um cantor nômade de passagem por Ascoli, que sabia tudo de Pete Seeger e Woody Guthrie, nem é preciso dizer Bob Dylan. Na cidade éramos os únicos, na época, a ouvir aquela música, e cantar Which side are you on nos convenceu de que um dia faríamos grandes coisas. Daquela vez eu estava sentado sozinho nos degraus da banca de jornais, mas logo chegariam os outros. De repente se aproximam dois guardas.

A arma na mão, apontada para mim, perguntam-me meus dados de identidade e me ordenam segui-los ao quartel. Não lembro o que tinha feito de tão grave para levar a Benemerita (Polícia Militar) a uma intervenção tão teatral; certamente tinha feito alguma coisa, mas não mais do que uma manifestação, no máximo com gritos de revolta ou cartazes pregados em espaços não autorizados, ou mesmo perturbação da ordem pública. Me opus, disse que não iria com eles se antes não me comunicassem explicitamente o motivo da imposição. Responderam-me que se tratava de simples esclarecimentos. Receei que acabasse mal, porque todas as histórias que acabam mal que eu conhecia começavam desse modo, com o pedido de simples esclarecimentos.

Logo depois chegou um camburão da polícia, onde fui enfiado enquanto continuavam a apontar a arma para mim. Nesse meio tempo, as pessoas que enchiam a praça, tocadas pela excepcionalidade do fato, lançavam olhares atravessados, como se eu fosse um criminoso. Tanto pior. O veículo saiu pela praça com a sirene ligada, perturbando o passeio noturno.

piazza del popolo
Fotografia de Alessandro Dandini, 6 de maio de 2020.

Piazza delle Carceri, Prato

Relatado por: Sandro Veronesi

Em: 12/04/2020

Piazza Santa Maria delle Carceri, em Prato, guarda um segredo. Um segredo geométrico do qual todos se beneficiam, mesmo que poucos o conheçam. É uma questão de eixos.

A praça existe desde quando foi construída a Basílica homônima, terminada em 1495 com projeto de Giuliano da Sangallo. Antes, naquela área persistia a antiga igreja de Santa Maria in Castello, segunda paróquia da cidade depois do Duomo, e principalmente o castelo correlato, chamado de Castello dell’Imperatore, mandado construir por Federico II di Svevia durante a primeira metade do século XIII. Isto é, aquela área não era uma praça. De modo que Giuliano da Sangallo encontrou-se, como muitas vezes acontecia com os arquitetos do Renascimento, projetando não só uma igreja, mas também a praça que a servia.

Para a igreja a solução foi a que lhe andava na cabeça havia tempo, de um edifício em cruz grega – e o desenvolvimento do exercício, vamos chamá-lo assim, nos deu uma peça de arquitetura raríssima e muito preciosa, ainda que, por causa do final dos fundos, incompleta; continuava o problema da praça, vale dizer, da relação entre esta nova peça tão preciosa e as duas pré-existentes peças citadas, estas também valiosíssimas. Principalmente com o Castello, já que se tratava em certo sentido de ladeá-lo.

Aqui o gênio de Giuliano da Sangallo fez nascer o segredo de que se falava no início. Os eixos da Basilica são rodados 17 graus em sentido horário com relação aos do castelo – como um giro de botão para abrir o espaço gerado pelas duas construções. Trata-se, como eu dizia, de um segredo que poucos conhecem, mas o bem-estar que ele produz é conhecido por todos que passam por lá, mesmo que só uma vez. A rotação dos eixos permanece oculta, por causa do uso que os homens sempre fizeram da praça, historicamente uma das mais cheias da cidade. Percebe-se um sentimento de libertação – de abertura, mais exatamente –, sem notar qual seja a causa.

Eu morei naquela praça por mais de dez anos, e a vi se transformar de estacionamento em área de pedestres, mas sempre cheia, percorrida, habitada, apinhada. E foi justamente o uso que sempre foi feito dele, seja ele qual for, que guardou o segredo que o torna tão agradável de usá-la.

Mas agora a praça está vazia; e tão vazia, tão metafisicamente vazia como ninguém jamais a viu, imaginou ou pensou, não consegue mais esconder seu segredo – na verdade, ela o revela descaradamente, grita e ostenta: de repente, a coisa mais vistosa é precisamente o golpe com que Giuliano da Sangallo fez rodar os eixos da sua obra-prima em relação aos do Castelo vizinho.

A demonstração de que sem mais o homem para usá-lo, o espaço é reconquistado não só pela natureza, mas também pela geometria.

piazza delle carceri
Fotografia de Margherita Nuti, 10 de abril de 2020.

Piazza Benedetto Brin, La Spezia

Relatado por: Maurizio Maggiani

Em: 15/04/2020

Piazza Benedetto Brin, que foi um almirante construtor e construiu o maior arsenal militar do reino, e em torno dele colocou uma cidade, uma cidade como ele pensava que deveria ser, e povoou-a com povos estrangeiros mantidos juntos por seu trabalho, construir os navios mais poderosos do mundo. No centro da cidade colocou o bairro dos trabalhadores de seu arsenal e no meio do bairro uma praça com seu nome. E a praça se tornou um teatro, uma fantasmagoria, uma selva e um campo de Marte, porque era o umbigo de todo o bairro e o cenário de cada um. A praça do orgulho operário, da presunção empregatícia, da meticulosidade engenheira, da delinquência infantil e da formalidade das crenças.

Possuía naturalmente a sua igreja e suas seções de partido, a praça das festas e dos funerais, do corpus domini e do Primeiro de Maio. A praça em que o torneiro mecânico ia ler com calma a Unità no domingo de manhã, num banquinho ao sol no inverno, à sombra de um cedro no verão, e depois passava para tomar um copinho de vinho branco na seção. A praça em que no domingo à tarde as senhoras de bem iam tomar comodamente um sorvete nas mesinhas da Maria. A praça em que num quiosque, inverno e verão, o senhor Stoppa fritava, em óleo diretamente retirado de algum tanque do arsenal, sonhos quentes, grandes como rostos e muito bons pelo preço que custavam.

A praça em que da primavera ao outono toda noite havia música, música de orquestras, de toca-discos e de ambulantes, e havia quem dançasse, quem levasse jantar, mesa e cadeiras de casa. A praça que no tempo se tornou uma imaginosa floresta de altos pinheiros de Aleppo, palmeiras reais do Nilo, cedros do Líbano, magnólias do Himalaia, laranjeiras da Sicília, povoada de aéreos pombos, velozes ratões e indefiníveis criaturas da escuridão, talvez duendes ciganos, talvez carrancas aproadas dos abismos.

Na praça foi erguida uma grande e magnífica fonte, um tanque de mármore e um obelisco marchetado de mosaico do grande escultor Mirko, quanto mistério e quanto orgulho em não se entender bem se era realmente bela ou só extravagante. Mas por muitas gerações não houve menino sem um barquinho, rapazote sem um adversário, mocinha sem um namorico para jogar lá dentro. No verão os mendigos vinham de toda a Itália tomar banho, no feriado de agosto, o Ferragosto, o padre organizava uma pesca de patinhos. Até aqui usamos o passado, mas a praça ainda está lá; o fato é que não existe mais o poderoso arsenal, não existem mais seus poderosos navios, seus operários e seus engenheiros, suas intenções e muito menos suas razões, sua vizinhança. E a praça agora é um grande e exótico ser adormecido, que sonha, e sonhando fala em línguas de mistério.

piazza benedetto brin
Fotografia de Jacopo Benassi,12 de maio de 2020.

Piazza Vittoria, Nápoles

Piazza Vittoria, Nápoles

[Piazza del Plebiscito, Nápoles]

Relatado por: Eduardo Savarese

Em: 17/05/2020

Raramente, ao cruzar a Piazza del Plebiscito para ir a Santa Lucia, em direção ao mar, deixo-me atrair pela igreja, cúpula e colunata. As circunscrições geométricas da forma visam regulamentar a cidade: se não fosse uma pretensão tão infantil, seria arrogante. Mas as inúmeras arquiteturas, perspectivas, vistas que se sobrepõem atrás dela são suficientes para redimensioná-la: chegando a elas, chega-se ao mar, antes do mar à coluna partida, uma entrada para a Piazza Vittoria de monumental ironia. Esta praça tem muitas entradas: irregulares e desordenadas, a cada uma corresponde um espírito diferente. A entrada do retorno no barco do meu amigo Toti (que atraca no Castel dell’Ovo), depois de ter nadado na Baia del Cenito; ou a entrada oposta, da Piazza dei Martiri, pela breve elegância da via Calabritto.

Como para toda presença metafísica, a presença da cidade também se faz justamente na ausência. Durante as semanas da pandemia a lei da presença na ausência aconteceu na minha sala de estar, como na Piazza Vittoria, uma das mais movimentadas praças da cidade, do amanhecer às altas horas da noite. Com o desaparecimento humano, as portas de acesso se fazem visíveis, como pela revelação de códigos secretos que tínhamos justamente debaixo do nariz sem decifrá-los: na oblonga perspectiva retangular da Villa Comunale; na conexão quântica entre Monte di Dio, com seus edifícios gigantescos, estrondosos, ainda hoje perturbados pelo jogo democrático, e Chiaia, com a via Cappella Vecchia e a pequena Sinagoga; na permanência do castelo-fortaleza, que se eleva minúsculo ao lado do corpo do Vesúvio; aos perfis do Palazzo Partanna e Palazzo Calabritto.

De uma das janelas deste palácio, que dão para os voos das gaivotas entre a Villa e a coluna partida no mar, eu e meu gentil hóspede, que por trabalho passou alguns anos na cidade, escutamos às três da manhã a voz da Callas cantando a ária de Sansão e Dalila. A desolação logo tenta se apropriar da ausência, e a entristece.

Mas poderia acontecer que numa noite de junho eu me dedique a uma fuga ofegante do Vomero à Piazza e me encolha aos pés da coluna partida. Desceria do alto a música de Costa com letra de Di Giacomo (Era de maggio: para recuperar o mês mais belo ainda passado em casa), e o Castel dell’Ovo, vazio e palpitante nas águas noturnas do golfo, se iluminaria em festa como nos tempos dos cafés-chantant: eu, eu dançaria no calçamento umedecido. Poderia dançar a noite toda, naquela ausência não desolada. Não viriam fantasmas para me fazer companhia, mas as entidades amorosas que somente as longas esperas são capazes de gerar.

piazza vittoria
Fotografia de Raffaela Mariniello, 12 de maio de 2020.

Piazza San Nicola, Bari

[Piazza Mercantile, Bari]

Relatado por: Nicola Lagioia

Em: 20/05/2020

Com sua amplitude e sua brancura vibrante, a Piazza Mercantile resume o espírito de Bari, uma cidade aparentemente mais material do que metafísica, mais ativa do que lírica, a capital da Apúlia encontra sua razão prática no comércio. Este espaço era dedicado ao comércio e aos negócios desde a Idade Média, com uma coluna infame para expor os insolventes. Agachado ao lado do pilar há um leão em rocha calcária, remonta a uma época mais antiga, simboliza poder e justiça. A solidez aqui é uma obrigação, o sentimento pelos negócios um conselho. Para o barese, uma palavra é pouco e duas são demais. A frequente exortação “conclua!”, dirigida ao interlocutor, une o augúrio para eles mesmos (a negociação bem-sucedida) à universal necessidade de não se perder em falatórios.

Mas se resume a isso o caráter dos cidadãos? É tão raso o coração dos habitantes de Bari? Naturalmente não. Quem, dotado de boa sensibilidade, precisasse entrar na Piazza del Ferrarese às três da tarde encontraria, no vento e na luz, juntamente com as exigências mundanas algo a mais. Não muito longe está a Basílica, em cuja cripta estão guardados os ossos de San Nicola, referência para duas igrejas (católica e ortodoxa) e duas civilizações.

O profano se transfigura em sagrado, e isso dá uma nova vida aos becos e ruas. Mas o canto dos cristãos se transfigura por sua vez em outra coisa. Parados esperando na praça, ouve-se o mar em certo momento. Vem de lá a terceira e conclusiva vocação da cidade: voltado para o leste, um desejo de Oriente capaz de intermediar o desejo de prosperidade e a necessidade de salvar a alma. Assim a praça, olhando para o Adriático (além do Adriático os Balcãs, além dos Balcãs a Lícia de onde vem o santo, depois o oriente profundo, definitivo) é como se se desfizesse e se reconstruísse continuamente, perdesse a memória e depois a reencontrasse: a pedra, a luz, depois a música, o segredo de todo o segredo.

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Fotografia de Michele Cera, 18 de maio de 2020.

Piazza Duomo, Milão

Relatado por: Helena Janeczek

Em: 30/04/2020

O Duomo que domina a praça vazia, uma das praças italianas concebidas como a sombra do sonho de grandeza contornado pelas agulhas com a Madonnina, a praça grande demais para nunca ter sido uma verdadeira praça. Agora que não serve de fundo de selfies, ponto de partida para compras ou ponto de encontro, agora que Milão está parada, a Catedral de Milão revela o sentido de um desenho que nós, transeuntes ou visitantes, estrangeiros ou milaneses, nunca fomos capazes de compreender em nossa pequenez ocupada.

É o centro majestoso de uma harmonia de mármores e granitos, uma harmonia claro-escura que evocaria dias de neblina desaparecidos ou velhos cartões-postais em preto e branco, se o céu extraordinariamente límpido não o dominasse. Mas o Duomo foi abandonado até mesmo pelo cinzento dos pombos, aqueles seus hóspedes simbióticos que seriam as últimas testemunhas livres para perceber voando o quanto é triste a grande beleza petrificada, quando escasseia a vida que a suja.

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Fotografia de Luca Campigotto, 4 de abril de 2020.

Piazza Scossacavalli, Roma

Relatado por: Matteo Lafranconi

Em: 17/05/2020

Piazza Scossacavalli é uma das praças italianas designadas como topônimo desaparecido e está “invisível”, não sem motivo. A um passo de San Pietro, ao longo do eixo que vai da fachada em direção ao Tibre, foi completamente demolida no final da década de 1930 para dar lugar à Via della Conciliazione, a nossa Avenida Nevsky, com a qual Mussolini quis homenagear no mapa de Roma, a Concordata entre a Itália e o Vaticano. Hoje apenas o Palazzo Torlonia, ao estilo de Bramante, permanece da antiga estrutura, um edifício severo inspirado nas linhas da Cancelleria, alinhado no lado norte da Conciliazione.

Todas as partes do quadrilátero original – a igreja de San Giacomo com a fachada de Antonio da Sangallo no lado leste, o Palazzo dei Penitenzieri original de Baccio Pontelli no lado sul, o velho Palazzo dei Convertendi de Annibale Lippi no lado oeste, a fonte central desenhada por Maderno no centro da praça – foram engolidos pelo vazio metafísico desajeitado do eixo, no estilo de Piacentini, em favor de uma perspectiva sobre a Basílica de São Pedro que nem Bramante, nem Michelangelo, nem Bernini jamais quiseram tão livre.

No quinto centenário da morte de Rafael, é bom lembrar que na Piazza Scossacavalli, no esplêndido Palazzo Caprini que seu conterrâneo, amigo e mentor Donato Bramante construíra na frente oeste, Rafael viveu uma vida digna de sua posição nos últimos formidáveis anos de atividade, no vértice do sistema artístico que o Papa Leão X Medici, filho de Lorenzo, o Magnífico, lhe confiou para fazer de Roma a nova capital do Renascimento. Lá, Rafael morreu em 6 de abril de 1520 “após oito dias de febre contínua e aguda”. Ali, contra todo o protocolo, o Papa Leão foi homenagear, consternado, o corpo do seu arquiteto preferido. Ali se formou e teve início o interminável cortejo fúnebre, iluminado pelo fogo de cem tochas, do qual “todo o povo de Roma” participou em lágrimas, acompanhando o caixão até seu glorioso sepultamento no Pantheon.

Agora que você já entendeu melhor sobre as praças italianas, não deixe de conferir a exposição “Le Piazze [In]visibili” no Centro Cultural Correios, Centro – Rio de Janeiro, de 10 de setembro de 2021 a 24 de outubro de 2021.

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